quinta-feira, 2 de agosto de 2007

SEGURANÇA ALIMENTAR EM MOÇAMBIQUE

Segurança alimentar: entrevista Lázaro SantosMarcelo Carvalho*
Com aproximadamente 20 milhões de habitantes – número a ser confirmado por um censo populacional em curso –, Moçambique tem em comum com o Brasil o passado colonial português (o país foi colônia até 1975, ano de sua independência). No entanto, os processos histórico e social dos dois países geraram problemas diversificados, inclusive quanto à segurança alimentar e nutricional.
Lázaro Santos, entrevistado pelo Ibase, é coordenador do projeto Direito Humano à Alimentação Adequada, da Organização das Nações Unidas para a Agricultura e a Alimentação (FAO) em Moçambique. O projeto envolve Estado e sociedade em prol da implementação da segurança alimentar e nutricional no país.
Ibase – Qual a situação da terra em Moçambique?
Lázaro Santos – Em Moçambique, ninguém tem propriedade sobre a terra. A terra é do Estado, que permite ao cidadão que a ocupe e trabalhe nela: é o Direito de Uso e Aproveitamento da Terra. Mas, agora, o que está a acontecer é o aparecimento de conflitos no campo, gerados por investimentos da grande agricultura e do turismo. Até houve, há dois anos, uma ameaça de liberalização promovida por interesses privados, pondo em causa a propriedade da terra do Estado. Apesar disso tudo, não se pode dizer que haja falta de terra em Moçambique para quem quer que seja, pois o Estado garante esse direito. Não é de maneira alguma uma situação como a do Brasil ou a do Zimbabwe, a antiga Rodésia, vizinha de Moçambique, onde há resquícios muito fortes de colonialismo e poucos senhores detêm a maior parte da terra.
Ibase – Há problemas envolvendo questões tradicionais e o acesso à terra?
Lázaro Santos – Sim, há. Em muitas regiões no interior, se a mulher torna-se viúva, os familiares do marido tomam a concessão da terra e os bens da esposa. Eles não a consideram herdeira, esquecendo-se de que tanto ela quanto os filhos herdam, sim, o direito ao uso da terra e dependem disso para sua subsistência. Esse problema tem se tornado mais pronunciado com a questão das pessoas vítimas do HIV, pois os filhos perdem seus pais muito mais cedo. Essas crianças tornam-se vítimas indiretas do HIV ao perderem seus pais. Muitas acabam sendo cuidadas pelos avós que, por serem pessoas já idosas, necessitam elas mesmas de cuidados. Quando não é o caso de crianças assumirem a posição de chefe de família.
Ibase – Quais as diferenças entre o interior e o meio urbano em Moçambique quanto à segurança alimentar e nutricional?
Lázaro Santos – As medidas adotadas anteriormente não levaram em conta a vulnerabilidade alimentar urbana, concentrando as ações nas áreas rurais. Isso faz com que a situação nas zonas rurais seja mais conhecida do que nas áreas urbanas. No entanto, alguns estudos – pouco complementados, e esse foi um ponto fraco – indicam a probabilidade de uma situação mais crônica de insegurança alimentar e nutricional nas zonas urbanas do que nas zonas rurais. Mas a relação entre campo e cidade é bastante complexa, não se resume a isso.
Ibase – De que forma?
Lázaro Santos – Por exemplo, no que diz respeito especificamente à questão da segurança alimentar e nutricional, vamos encontrar uma zona urbana dotada de informações coletadas nos hospitais sobre desnutrição crônica em crianças, pela própria dinâmica do atendimento médico. Esse tipo de informação nas zonas rurais é quase nulo. Por outro lado, as zonas rurais têm se beneficiado com avaliações rápidas realizadas três vezes por ano. Mas segurança alimentar não é só desnutrição. É o resultado de um conjunto de ações que devem ser planificadas. As zonas rurais não têm acesso a serviços básicos, como o de saneamento básico, diferentemente das áreas urbanas, que têm mais acesso a esses serviços. Em Moçambique, a infra-estrutura de conservação e fornecimento de água para o consumo humano e para a agricultura é fraca. A região de Nampula, no Norte, a mais populosa do país, com quase dois milhões e meio de habitantes, é a mais produtiva de Moçambique e a que tem o melhor índice de distribuição de chuvas. Mas, apesar de Nampula ter acesso e disponibilidade alimentar ao longo do ano, é a região que tem o maioríndice de desnutrição crônica. Entre as causas, estão não apenas os hábitos alimentares enraizados e uma cultura de alimentação não diversificada, como também os problemas de acesso à água, pois a água da chuva se perde. E, agora, já começa haver sinais de obesidade, tanto entre os mais pobres quanto entre os mais abastados.
Ibase – Há alimento suficiente para a população?
Lázaro Santos – Sim, há alimentação suficiente. Principalmente em algumas regiões, como no Norte do país. Mas a distribuição – esse é outro problema grave – deixa muito a desejar. As estradas e a infra-estrutura, em geral, estão concentradas nas zonas litorâneas e no Sul de Moçambique, as zonas mais desenvolvidas. Isso foi implementado para garantir o escoamento dos produtos para os portos, com vistas ao comércio com os países vizinhos, principalmente a África do Sul. Por conta disso, a produção de alimentos das províncias Zambézia e Niassa abastece a capital Maputo e as cidades do Sul a bons preços, mesmo estando a mais de dois mil quilômetros da capital.
Ibase – Isso é positivo.
Lázaro Santos – É, mas você pode encontrar na mesma página de jornal uma matéria que faz referência ao abastecimento da capital e uma matéria na qual se lê que no distrito vizinho ao que fornece alimentos para Maputo há bolsões de fome e miséria. É vergonhosa uma situação dessas! Muitas vezes, os distritos onde há fome recebem doação de alimentos de países desenvolvidos, quando há um distrito ao lado que tem disponibilidade de alimento, que pode fornecer alimentos! É preciso privilegiar a compra de alimentos nacionais, proporcionando o acesso à alimentação para todos e viabilizando a sobrevivência dos pequenos agricultores, garantindo o escoamento da produção deles. Isso requer reestruturar o sistema, já que o país não sabe quanto gasta em segurança alimentar e nutricional.
Ibase – Não há dados sobre quanto se gasta?
Lázaro Santos – Sabemos quanto as entidades de coordenação gastam, no topo do sistema, mas não sabemos o montante do que é gasto pelos setores. Este é um grande desafio: saber quanto se gasta comparado com o montante do que é necessário gastar. É preciso saber se o Estado está a gastar o suficiente para garantir o direito das pessoas à segurança alimentar e nutricional. Os sistemas públicos alegam não ter recursos, quando, às vezes, os recursos estão lá, mas não estão sendo geridos de maneira correta nem direcionados para onde devem estar.
Ibase – E qual a estratégia que o país adota para combater a insegurança alimentar e nutricional?
Lázaro Santos – Primeiro, é preciso que se diga que houve um erro na estratégia anterior de combate à insegurança alimentar e nutricional. Ela foi basicamente emergencial e assistencialista. O assistencialismo faz com que as pessoas fiquem, por exemplo, esperando a doação das sementes, sem se preocuparem em fazer reserva própria. Isso cria um ciclo de dependência. Neste momento, estamos implementando uma nova abordagem que privilegia o desenvolvimento e a garantia de direitos sociais.
Ibase – Quais as iniciativas atuais contra a insegurança alimentar em Moçambique?
Lázaro Santos – Estamos em um processo de constituição da segunda Estratégia Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional de Moçambique (Esan II), de capacitação de pessoal e de fortalecimento da sociedade civil. A Esan II já foi apresentada ao governo para ser aprovada. O desafio da estratégia é o de implementar ações concretas para combater a situação de insegurança alimentar e garantir a educação nutricional e o acesso aos serviços. A estratégia coordenará as ações até 2015.
Ibase – Além da Esan II, o que mais haverá?
Lázaro Santos – Bem, será preciso elaborar um plano de ação que encaminhará as ações de implementação do que foi estabelecido na Esan II. Trabalha-se, também, na construção do estatuto do futuro Conselho Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional de Moçambique. O futuro conselho integrará Estado e sociedade civil, não em situação de paridade ou de superioridade da sociedade civil, como muitas vezes acontece no Brasil e em alguns países da América Latina, mas com maior presença do governo. A representação da sociedade civil no órgão será de quase um terço.
Ibase – Por quê?
Lázaro Santos – Moçambique é diferente do Brasil, que consegue reunir em uma conferência quase duas mil pessoas, algumas falando com bastante propriedade sobre o assunto (Nota: trata-se da III Conferência Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional, ocorrida de 3 a 6 de julho em Fortaleza, Ceará). Em Moçambique, só algumas organizações da sociedade falam sobre soberania alimentar e nutricional. O governo assumiu o direito humano à alimentação adequada e à segurança alimentar e nutricional desde os anos 1990.
Ibase – Como está o trâmite legal?
Lázaro Santos – Até agosto ou início de setembro, esses documentos já devem ter sido aprovados para que seja institucionalizado o direito à alimentação adequada em Moçambique. Queremos abandonar a perspectiva emergencialista que animava a questão nos anos 1980, período da guerra e de seca pronunciada. Queremos nos orientar, agora, mais para uma perspectiva de libertação, de garantia de direitos, de ação social, para que, depois, as pessoas tenham meios de produzirem por si – excetuando-se, evidentemente, aqueles que estão em estado irreversível, os doentes e os idosos que já passaram da idade produtiva.
Ibase – Haverá lei específica para o tema, como a Lei Orgânica de Segurança Alimentar e Nutricional (Losan) no Brasil?
Lázaro Santos – Sim, esse será o passo decisivo. Já havia sido preconizada uma lei de Direito Humano à Alimentação Adequada na estratégia anterior, especificamente no Plano de Redução da Pobreza em Moçambique. É preciso ter regulamentação específica muito clara dos direitos que as pessoas têm para que elas possam sair da condição de vulnerabilidade. Não é só uma questão de legislação, mas de dar instrumentos à política de segurança alimentar e nutricional na perspectiva de direitos.
Ibase – Qual a estimativa de tempo com a qual vocês trabalham para a lei estar pronta e aprovada?
Lázaro Santos – A constituição da lei vai levar algum tempo, porque é uma discussão que envolve tanto a área econômica quanto as áreas política, administrativa e técnica. Enfim, pensamos que após a aprovação destes três primeiros instrumentos, a Esan II, o Plano de Ação e o estatuto do Conselho, teremos um pouco mais de fôlego para aprofundar o trabalho sobre a proposta de lei apropriada a ser entregue ao parlamento. Creio que nos primeiros meses do próximo ano já teremos finalizado todo o processo de regulamentação e instrumentalização. Os primeiros aspectos a serem regulamentados pela lei serão a alimentação escolar, a ratificação de algumas convenções, como o Pacto Internacional de Direito Econômico, Social e Cultural, e a regulamentação da ação social. É preciso, enfim, garantir que as pessoas não mais passem fome.
*Jornalista, colaborador do Ibase Publicado em 26/7/2007.